A terra da luz é também a terra do mar, do peixe e do vento. E dos barcos. Eles são muitos e muito caprichados e coloridos. Aqui sobrevive a tradição da construção artesanal de embarcações de madeira, à vela, que podem chegar a dezenas de metros de comprimento e a passar várias semanas no mar. Sem projeto, sem bússola, sem mapa e sem motor. Estrategicamente distante algumas poucas centenas de kilometros do Equador, a costa cearense escapou das calmarias da zona equatorial e desfruta plenamente do vigor e constância dos alísios, que impelidos pela rotação da Terra sopram fortes e constantes em uma direção NE-SW.
A geografia da região foi moldada a partir da extensa Formação Barreiras, uma extensa camada de rochas sedimentares areníticas que ocupa toda o setor leste da Costa Norte do Brasil. Ao longo de milhões de anos da ação de ondas e vento, as rochas da Formação Barreiras foram se transformando em incontáveis toneladas de areia, que foram sendo expostas aos ventos à medida que o nivel do mar regredia nas ultimas dezenas de milhares de anos. Arrastadas pelos fortes alísios, a areia da Fomarção barreiras deu origem às abundantes e belíssimas dunas da região, que caracterizam o relevo da costa e emolduram os coqueirais e pitorescas vilas de pescadores. Cenários de sonho.
A baixa latitude proporciona marés amplas, de até 2,5 metros de amplitude, o que pode produzir situações muito peculiares na maré seca, como imensos barcos repousando placidamente na areia ou praias onde não se vê o mar. A praia de Arpoeiras, em Acaraú, é extremamente rasa, e na maré seca é preciso andar vários quilômetros para molhar os pés. Nestas situações, nativos mais ousados chegam a percorrer vários quilômetros, em alta velocidade, a bordo de carros movidos à vela.
A tradição náutica na região remonta aos indígenas costeiros, que chegaram ao continente há mais de 15000 anos. Estes desde cedo aprenderam a dominar o mar em suas canoas e jangadas feitas com troncos de árvores, enriquecidas pelas velas triangulares trazidas por colonizadores europeus. Com a abundante e nobre madeira tropical essa mistura deu origem a dezenas de tipos de embarcações, que fazem desse trecho da costa Brasileira um dos mais férteis celeiros de embarcações tradicionais do mundo.
As viagens de pesca são improvavelmente longas: uma tripulação de geralmente 3 pescadores pode passar mais de uma semana em uma pequena canoa aberta (sem convés), munidos apenas de linhas, anzóis, uma caixa de gelo, um botijão de gás para a iluminação noturna (alerta para outros barcos e navios), um braseiro para assar o peixe recém pescado e um rancho simples de farinha d'água, café, açucar e óleo. Para dormir, pedaços de rede atados de um bordo a outro da canoa, e as estrelas por cobertor. No chuvoso inverno da região pedaços de lona plástica protegem o corpo cansado de parte da chuva.Os botes maiores, dotados de um convés baixo e maior capacidade para enfrentar o mar e carregar mantimentos, chegam a ficar várias semanas em alto mar. Rojões anunciam a sua chegada na barra, e as famílias, curiosos e compradores de peixe se aglomeram conturbadamente à medida que os cascos tocam a areia.
No porto, as famílias esperam ansiosas o retorno de seus pais, irmãos e maridos. Se deram sorte, chegam ao porto com tremendas feras, camurupins, cações, meros e arraias que podem atingir centenas de quilos, capturados apenas com enormes anzóis e linhas resistentes, seguras diretamente pelas mãos calejadas, sem varas ou molinetes.
As comunidades costeiras da costa do poente produzem e reproduzem uma cultura generosa e peculiar, onde a mudança das dunas e das barras de rios, e os altos e baixos da pesca são refletidos no comportamento flexível, festeiro e na despreocupação com o compromisso, estabilidade e resistencia das coisas. Berço privilegiado da “gambiarra” e dos excessos na comida, bebida e amores, entre os nativos a técnica precisa e sofisticada de construção, pesca e navegação contrasta com a inabilidade dos nativos em planejar e entender as mudanças externas que ameaçam e minam sua sobrevivencia . Tudo muda rápido por aqui. A cor e fisionomia do pescador varia com a exposição ao sol e a abundância de alimento. Seu humor, com o sucesso na pescaria. O chão, com o vento ou com a maré, que muda dunas e barras de rios de um lado para outro, rápido. A incerteza vai com o homem no mar e o espera na volta ao porto. A flexibilidade e capacidade de adaptação, presente nos mastros e no caráter, está sempre presente. Enquanto os homens e barcos do litoral dos extremos do litoral cearense resistem às ameaças do mar e do progresso, nossos sentidos agradecem e desfrutam o espetáculo.