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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Na duna não há meio termo...

     Este mundo é mesmo maluco: o alto da serra, que ja foi fundo de lago, se desfaz agora em areia e inaugura um pequeno deserto no meio de muitas águas. Eu que hoje acordei e tomei um banho de rio, um rio enorme e com água muito limpa, fui lançado no topo da duna.

    Nas horas quentes do dia dividir alguns metros de sombra com o pequeno lagarto. Nutritivas mutucas disputando o sangue do grande mamífero. Convivência cria intimidade, de desconfiado o réptil chega perto para chegar perto das mutucas, o grande mamífero, sonolento, tolera a pequena criatura.  Estes dias esperando alguma coisa em algum lugar eu vi na tv um leão enorme e feroz cercado de mutucas, e um pequeno lagarto chegando perto para comer os insetos. No melhor momento o lagarto ágil subia na pata do leão e abocanhava uma gorda refeição. Incrível, nunca tinha visto. Enfim o meu dia de leão: o réptil atrevido sobe em mim, come uma gorda mutuca e corre saltando pela areia quente. Na duna é assim, do inferno ao paraíso em segundos.


Radiação solar, calor, luz, areia, vento, silêncio. Humanos próximos? a dezenas de quilômetros. Espaço amplo fora, vira do avesso e deixa o pensamento e a consciencia muito mais espaçosos tambem. Três dias e três noites !

     Sombras que se alongam, no fim do dia o corpo quente encontra de novo a água do rio, mas agora é outro rio, mais raso, menos água e mais areia, mas também limpa e refresca do mesmo jeito. Não há mais o duro sol, e nem o calor. Tudo é muito mais leve agora. Estou limpo e seco, e caminho descalço sobre a areia morna e delicada, entre águas e buritis. O mesmo alto de serra que fez a areia faz agora uma lua imensa e cheia, que olha bem de frente um colorido de sol que se põe. Em pé, sobre um outro alto, mas que não é tão alto quanto o alto da serra, olho tudo isso acontecendo bem ali na minha frente, e presto bastante atenção. Amanhã eu vou tentar subir a serra pra ver isto tudo lá de cima.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Pau que nasce torto...


        Algumas coisas fazem a existencia valer a pena. Para a minha, transformar madeira bruta em
barcos é uma delas. A nave em gestação é um pequeno veleiro, que tambem navega a remo, de nome  Loki, o deus nórdico do fogo e da travessura, escreve certo por linhas tortas, traz a paz pela destruição. Auto-identificação ?

       O casco de curvas muito suaves pede peça que acompanhe a curva. Madeira reta, aparelhada, que se compra em loja, não serve. Tem que achar galhão ou tronco que já nasceu torto, à moda antiga.

       Entre tantas, tenho sorte: o trabalho de consultoria na zona costeira uma vez me levou à Praia de Leste, que fica bem onde o grande Ribeira de Iguape entrega suas águas ao oceano.  Com as águas do grande rio, milhares de troncos arrancados de suas margens vem dar à praia. O resultado, em vez de áreia muita madeira! Raciocínio é conexão:buscar matéria prima para Loki na Praia de Leste !

      A idéia esperou a hora certa: depois de meses de espera, hoje voltei à região para continuar o
trabalho. Após o cumprimento da missão formal, já quase as 5 da tarde, decidi voltar a Praia do Leste, desta vez munido de ferramenta pra caçar madeira, na hora e meia de luz que teria, e com a maré subindo.

        Ia olhando e olhando, provando madeira com serrote pra ver se prestava. Corta e nada, corta e nada, e finalemnte achei uma razoável.Cortei. Achei outra, cortei. E quase no escuro, água
batendo na canela, achei a terceira ! Finalmente a madeira nobre, do jeito que eu queria, de fino grão, compacta, firme e cheirosa, rosada. Esforço vigoroso, extenuante, os dois braços empenhados, corpo inteiro, serrote trabalhando nervoso, porque muita madeira e pouco tempo. Sucesso! As estrelas chegaram e eu ja tinha 4 belas peças.

       No glorioso crepusculo, missao cumprida, e o retorno ao pouso com o carro carregado de matéria prima para concretizar sonhos. Loki vai ganhando corpo, história e personalidade.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Mar de Potenciais


            Voltar ao Lagamar tantos anos depois com a insólita missão de prospectar, entre as dezenas de pequenas e isoladas comunidades caiçara, potenciais para ação coletiva pela sociobiodiversidade, soa no mínimo auspicioso. E navegando a braço, vento e maré: nenhuma gota de petróleo seria queimada nas duas centenas de kilometros percorridos em baías, rios e canais a partir do porto de Cananéia.


           Pessoas, grupos, talentos, tecnologias tradicionais, cultura, pescado, artesanato, alimento, ações coletivas pela sociobiodiversidade costeira e ribeirinha. Pólen que as vezes por falta da abelha não concebe frutos, sementes que por falta do pássaro não vão longe. Potenciais que por não se conectarem, não se realizam. Problemas que persistem, socioecossistemas que se extinguem.


            Autonomia total: o kayak tradicional esquimó e a canoa caiçara levariam alimento e abrigo. Onde chegasse, poderia ficar. Carregado, parto em uma manhã chuvosa do porto de Cananéia.



         Na Enseada da Baleia, grupo de mulheres artesãs em tecido, e douradas postas de tainha seca e salgada, o bacalhau caiçara. Tecnologia tradicional local, desse jeito só aqui. Só que morreu seu Malaquias, e ninguém mais faz. Mas ainda sabem fazer. No Varadouro tem Zé Pereira, conhece a mata e a árvore, constrói canoa, rabeca e viola, toca fandango, já ouviu falar ? Lá eles tem variedade de arroz e mandioca que só tem lá. Uma pena que o Varadouro tá sumindo: das 12 familias em 7 anos restaram 4. E no Ariri, tem produção tradicional com piaçava, tem cestaria elaborada, tem associação de moradores motivados, mas que ainda não conseguiram montar projeto. No povoado quilombola do Mandira o seu Chico tava contando como ele fabricava os pitos (cachimbo) de barro fumar o tabaco plantado ali. Do mesmo jeito que seus avôs escravos. Contou também que o caboclo incauto pediu ao índio um pau (penis) seco de quati pra energizar suas práticas amorosas: depois de seco no sol o pau do quati fica rígido como madeira, e raspado e bebido na água, se converte em poderoso afrodisíaco. O índio esperto, que não achou o quati, vendeu ao caboclo um pedaço do cipó timbupeva cuidadosamente esculpido à moda de pau de quati (Chico complementa que a característica distintiva do timbupeva é que ele cresce de cima pra baixo): pobre caboclo, vai emprestar da beberagem o comportamento do cipó... Em outra variação, o índio esperto vende ao caboclo incauto um pau de cachorro do mato, bicho que vagueia nômade, incansável. Previsível: o caboclo não parava mais em casa... E no Marujá embarcar pra pescaria de canoa e rede com Seu Salvador: olhar a geografia da gamboa, achar o poço ou o baixio ou o focinho. Olhar o peixe, o sinal dele na água, fazer silencio. Soltar a rede, estratégicos e cuidadosos. Bater na água com o remo. Puxar a rede, recolher peixe brilhando agitado para comer no almoço. E veio ! Do canal olhar o rio vindo do  morro e decidir caçar a cachoeira. Encontrar róseos e enormes guarás pousados no galho do mangue, como outras tantas e multicoloridas bromélias também pousadas, encurralar cardumes de paratis junto com o grupo de botos, olha a tartaruga embaixo do barco ! E todos os dias o sol nascendo e se pondo, sumindo e dando lugar à o sol de novo. Céu de azul profundo muito estrelado, lua crescente, no movimento da água a noite brilham criaturas, bioluminescência que desafia a razão. Areia muito acolhedora da praia e da cachoeira, espaço luxuoso para o respirar, o tracionar, o torcer, o fletir do corpo. Escutar, concentrar,  hiperconsciência.
      

         O maior dos potenciais: a convivência. Generosa, interessada, divertida. Sim, no amalgamar das culturas "neo-tradicionais", o diálogo intercultural é necessário e pode ser produtivo. Fluxo livre de informação: os mundos devem, no mínimo, conhecer-se.
       

          Cem mil remadas. Precisar chegar, movido a corpo. A proa do barco riscando a água, um dos nomes de Deus. Barco também é movido à atitude, paciência faz chegar mais rápido. Mira-se o horizonte, mira-se a proa, monitora-se o esforço, a resposta do barco, ajusta-se tudo, muitas vezes.
       

          Encontrar potenciais, aqui e lá, costurar, tecer. Viagem complicada, idéia que nasce no asfalto encontrando seu sujeito à beira d’água. Finalmente fazendo sentido. Seu Chico entendeu a idéia: “é, essa sua amarração aí pode ser que de certo...”