Voltar ao Lagamar tantos anos depois com a insólita missão
de prospectar, entre as dezenas de pequenas e isoladas comunidades caiçara, potenciais
para ação coletiva pela sociobiodiversidade, soa no mínimo auspicioso. E
navegando a braço, vento e maré: nenhuma gota de petróleo seria queimada nas duas centenas de kilometros percorridos em baías, rios e canais a partir do porto de
Cananéia.
Pessoas, grupos, talentos, tecnologias tradicionais,
cultura, pescado, artesanato, alimento, ações coletivas pela
sociobiodiversidade costeira e ribeirinha. Pólen que as vezes por falta da
abelha não concebe frutos, sementes que por falta do pássaro não vão longe.
Potenciais que por não se conectarem, não se realizam. Problemas que persistem,
socioecossistemas que se extinguem.
Autonomia total: o kayak tradicional esquimó e a canoa
caiçara levariam alimento e abrigo. Onde chegasse, poderia ficar. Carregado,
parto em uma manhã chuvosa do porto de Cananéia.
Na Enseada da Baleia, grupo de mulheres
artesãs em tecido, e douradas postas de tainha seca e salgada, o bacalhau
caiçara. Tecnologia tradicional local, desse jeito só aqui. Só que morreu seu
Malaquias, e ninguém mais faz. Mas ainda sabem fazer. No Varadouro tem Zé
Pereira, conhece a mata e a árvore, constrói canoa, rabeca e viola, toca
fandango, já ouviu falar ? Lá eles tem variedade de arroz e mandioca que só tem
lá. Uma pena que o Varadouro tá sumindo: das 12 familias em 7 anos restaram 4.
E no Ariri, tem produção tradicional com piaçava, tem cestaria elaborada, tem
associação de moradores motivados, mas que ainda não conseguiram montar
projeto. No povoado quilombola do Mandira o seu Chico tava contando como ele
fabricava os pitos (cachimbo) de barro fumar o tabaco plantado ali. Do mesmo
jeito que seus avôs escravos. Contou também que o caboclo incauto pediu ao
índio um pau (penis) seco de quati pra energizar suas práticas amorosas: depois
de seco no sol o pau do quati fica rígido como madeira, e raspado e bebido na
água, se converte em poderoso afrodisíaco. O índio esperto, que não achou o
quati, vendeu ao caboclo um pedaço do cipó timbupeva cuidadosamente esculpido à
moda de pau de quati (Chico complementa que a característica distintiva do
timbupeva é que ele cresce de cima pra baixo): pobre caboclo, vai emprestar da
beberagem o comportamento do cipó... Em outra variação, o índio esperto vende
ao caboclo incauto um pau de cachorro do mato, bicho que vagueia nômade,
incansável. Previsível: o caboclo não parava mais em casa... E no Marujá
embarcar pra pescaria de canoa e rede com Seu Salvador: olhar a geografia da
gamboa, achar o poço ou o baixio ou o focinho. Olhar o peixe, o sinal dele na
água, fazer silencio. Soltar a rede, estratégicos e cuidadosos. Bater na água
com o remo. Puxar a rede, recolher peixe brilhando agitado para comer no
almoço. E veio ! Do canal olhar o rio vindo do
morro e decidir caçar a cachoeira. Encontrar róseos e enormes guarás
pousados no galho do mangue, como outras tantas e multicoloridas bromélias
também pousadas, encurralar cardumes de paratis junto com o grupo de botos,
olha a tartaruga embaixo do barco ! E todos os dias o sol nascendo e se pondo,
sumindo e dando lugar à o sol de novo. Céu de azul profundo muito estrelado,
lua crescente, no movimento da água a noite brilham criaturas, bioluminescência
que desafia a razão. Areia muito acolhedora da praia e da cachoeira, espaço
luxuoso para o respirar, o tracionar, o torcer, o fletir do corpo. Escutar,
concentrar, hiperconsciência.
O maior dos potenciais: a convivência. Generosa, interessada, divertida. Sim, no amalgamar das culturas "neo-tradicionais", o diálogo intercultural é necessário e pode ser produtivo. Fluxo livre de informação: os mundos devem, no mínimo, conhecer-se.
Cem mil remadas. Precisar chegar, movido a corpo. A proa do barco riscando a água, um dos nomes de Deus. Barco também é movido à atitude, paciência faz chegar mais rápido. Mira-se o horizonte, mira-se a proa, monitora-se o esforço, a resposta do barco, ajusta-se tudo, muitas vezes.
Encontrar potenciais, aqui e lá, costurar, tecer. Viagem complicada, idéia que nasce no asfalto encontrando seu sujeito à beira d’água. Finalmente fazendo sentido. Seu Chico entendeu a idéia: “é, essa sua amarração aí pode ser que de certo...”
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