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domingo, 11 de maio de 2014

In memorian...


Partiu para sempre a companheira de viagem.  Morte por afogamento nas águas salobras do Delta do Parnaíba. A última imagem antes da morte registra a terra de onde partiu e para onde não voltou. Maranhão, terra de encontros e de intensidades. Acontece. As vezes o barco é pequeno demais para o oceano, as vezes a carga é muita pro barco, as vezes o sonho é maior que as pernas.
Existe também a surpresa: o mar cresceu depois de quase dez quilômetros viajados cruzando a baía de Tutóia rumo às águas abrigadas do Delta. Dois homens, motor, vela e remo, todas as posses embarcadas. Com o mar que cresce, a sobrevivencia chama também a crescer a atenção. Muito vento, ondas desencontradas, a pancada do mar empurra água pra dentro, é preciso avançar.
A máquina é mais falível que o homem: molhado pelo mar, chacoalhado pelo alvoroço, o motor  criatura mecânica emudece de vez. Deixar derivar até à costa não é solução, as ondas quebrando e pontudos tocos não convidam a porto, trituram homem e barco. Decidir voltar, o objetivo já não está à frente, mas atrás. Preservar a vida, a bagagem, a embarcação.
Vento duro, mar grosso, água entrando. Tirar o motor, amarrar tudo, abrir a vela, subir o mastro. Nenhum segundo perdido, nas horas limite é preciso de tudo, toda a força, toda a resistência, toda a inteligência, todo o material, toda a calma, não desistir.Por fim a vela em cima e o rumo certo, apontando para a praia da partida. Poucas horas e os pés já pisam a areia dura. Ufa...
Mas acionar o "ON" já não surte efeito. Tira e põe bateria e lente, ilumina e aquece, o esforço desesperado de ver acender o painel. Já não há sossego, já não se pode engolir as belezas que se vê,  já não se pode consumir. Milhares de quilômetros, milhares de imagens, a receptiva criatura que registrou todas as cores destas páginas descansa em paz. Destino cumprido. É doce morrer no mar...
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O barco ?

É meu modo de conversar com o oceano.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tradição a 12 Nós...


A terra da luz é também a terra do mar, do peixe e do vento. E dos barcos. Eles são muitos e muito caprichados e coloridos. Aqui sobrevive a tradição da construção artesanal de embarcações de madeira, à vela, que podem chegar a dezenas de metros de comprimento e a passar várias semanas no mar. Sem projeto, sem bússola, sem mapa e sem motor.


O município de Camocim tem o maior número de embarcações per capita do Brasil. E o porto mais bonito de todos ! Se estende por alguns quilometros próximos à foz do Rio Coreaú, e é espetáculo de vida, formas e cores, emolduradas ao fundo pelas dunas da Ilha do Amor
Estrategicamente distante algumas poucas centenas de kilometros do Equador, a costa cearense escapou das calmarias da zona equatorial e desfruta plenamente do vigor e constância dos alísios, que impelidos pela rotação da Terra sopram fortes e constantes em uma direção NE-SW.
A geografia da região foi moldada a partir da extensa Formação Barreiras, uma extensa camada de rochas sedimentares areníticas que ocupa toda o setor leste da Costa Norte do Brasil. Ao longo de milhões de anos da ação de ondas e vento, as rochas da Formação Barreiras foram se transformando em   incontáveis toneladas de areia, que foram sendo expostas aos ventos à medida que o nivel do mar regredia  nas ultimas dezenas de milhares de anos. Arrastadas pelos fortes alísios, a areia da Fomarção barreiras deu origem às abundantes e belíssimas dunas da região, que caracterizam o relevo da costa e emolduram os coqueirais e pitorescas vilas de pescadores. Cenários de sonho.
Embaixo d´água, as dunas tem seu alter ego submerso: bancos de areia, muitas vezes quilometros distantes da costa, povoam os pesadelos dos navegantes que temem soçobrar em alguma maré seca. Encalhar em um  banco destes pode significar a destruição da embarcação, à medida que as fortes ondas suspendem o barco e o arremessam contra o fundo arenoso.
A baixa latitude proporciona marés amplas, de até 2,5 metros de amplitude, o que pode produzir situações muito peculiares na maré seca, como imensos barcos repousando placidamente na areia ou praias onde não se vê o mar. A praia de Arpoeiras, em Acaraú, é extremamente rasa, e na maré seca é preciso andar vários quilômetros para molhar os pés. Nestas situações, nativos mais ousados chegam a percorrer vários quilômetros, em alta velocidade, a bordo de carros movidos à vela.
A tradição náutica na região remonta aos indígenas costeiros, que chegaram ao continente há mais de 15000 anos. Estes desde cedo aprenderam a dominar o mar em suas canoas e jangadas feitas com troncos de árvores, enriquecidas pelas velas triangulares trazidas por colonizadores europeus. Com a abundante e nobre madeira tropical essa mistura deu origem a dezenas de tipos de embarcações, que fazem desse trecho da costa Brasileira um dos mais férteis celeiros de embarcações tradicionais do mundo.

 Jangadas, paquetes, botes bastardos, canoas costeiras, bianas, baiteiras. Aqui o processo orgânico e tradicional de desenvolvimento tecnológico, baseado na transmissão oral e prática do conhecimento do mestre para o aprendiz, originou diversas variações, onde cada porto tem seu tipo peculiar de embarcação. A cultura humana mimetiza a evolução biológica, onde cada contexto molda a evolução de formas específicas que foram selecionadas por muitas gerações de provas reais entre mar, vento e peixe. Um barco de outra praia dificilmente passa despercebido, pois as diferenças de dimensão e desenho terminam por denunciar sua origem. Toda a estrutura é feita a olho, sem régua nem projeto: o mestre arma as primeiras peças e através de ripas longas e flexíveis vai encontrando a curvatura que deseja para as peças intermediárias. Aos poucos vai rebatendo as medidas encontradas para o bordo oposto, e devagar as cavernas que formam o desenho do casco vão sendo tomando forma. Em seguida as tábuas do casco são presas, sem cola nem parafusos. Pregos galvanizados cuidadosamente batidos seguram estas peças que usualmente vem das florestas do Maranhão e Pará. Os pequenas espaços entre o tabuado  do casco são preenchidos por estopa de algodão e uma massa feita de óleo de mamona e cal, sob o som seco e agudo das batidas do martelo de calafate. Com algumas camadas de tinta de cores vivas o casco recém feito pode ir para a água e começar seu trabalho, levando homens ao mar e trazendo peixes para terra.
 Para o mastro o manguezal fornece as peças curtas, que unidas por grossas linhas de nylon compõe um mastro resistente e flexível, que dobra sem quebrar nas rajadas mais fortes, dispensando o excesso de potência do vento. A vela, ou pano, geralmente é feita pelo próprio pescador a partir de tecido comum de algodão, corda de nylon e linha de algodão, encerada com cera de abelha, dobrada  e torcida com paciência. Os modelos e mastreações também variam: há as velas chamadas quadradas, as redondas, triangulares, as armações em carangueja e bastarda. Linha de algodão revestida com cera de abelha costura o pano das velas e o une fortemente à cordas de nylon. Estas são presas, pelos punhos, ao topo do mastro e à ponta da “tranca”, peça horizontal articulada ao mastro que sustenta a parte de baixo da vela.

Apesar da rusticidade estes artefatos exibem uma performance invejável: passam  dos 12 nós de velocidade (um veleiro de cruzeiro, quando passa dos 6 nós já está comememorando). As proporções da vela, especialmente nos majestosos botes bastardos, se assemelham muito à das sofisticadas velas comerciais. O conjunto, casco, vela e homem, torna-se estável, confiável e com sorte e bom tempo trazem muito peixe à terra.
 As viagens de pesca são improvavelmente longas: uma tripulação de geralmente 3 pescadores pode passar mais de uma semana em uma pequena canoa aberta (sem convés), munidos apenas de linhas, anzóis, uma caixa de gelo, um botijão de gás para a iluminação noturna (alerta para outros barcos e navios), um braseiro para assar o peixe recém pescado e um rancho simples de farinha d'água, café, açucar e óleo. Para dormir, pedaços de rede atados de um bordo a outro da canoa, e as estrelas por cobertor. No chuvoso inverno da região pedaços de lona plástica protegem o corpo cansado de parte da chuva.Os botes maiores, dotados de um convés baixo e maior capacidade para enfrentar o mar e carregar mantimentos, chegam a ficar várias semanas em alto mar. Rojões anunciam a sua chegada na barra, e as famílias, curiosos e compradores de peixe se aglomeram conturbadamente à medida que os cascos tocam a areia.
No porto, as famílias esperam ansiosas o retorno de seus pais, irmãos e maridos. Se deram sorte, chegam ao porto com tremendas feras, camurupins, cações, meros e arraias que podem atingir centenas de quilos, capturados apenas com enormes anzóis e linhas resistentes, seguras diretamente pelas mãos calejadas, sem varas ou molinetes.
 As comunidades costeiras da costa do poente produzem e reproduzem uma cultura generosa e peculiar, onde a mudança das dunas e das barras de rios, e os altos e baixos da pesca são refletidos no comportamento flexível, festeiro e na despreocupação com o compromisso, estabilidade e resistencia das coisas. Berço privilegiado da “gambiarra” e dos excessos na comida, bebida e amores, entre os nativos a técnica precisa e sofisticada de construção, pesca e navegação contrasta com a inabilidade dos nativos em planejar e entender as mudanças externas que ameaçam e minam sua sobrevivencia . Tudo muda rápido por aqui. A cor e fisionomia do pescador varia com a exposição ao sol e a abundância de alimento. Seu humor, com o sucesso na pescaria. O chão, com o vento ou com a maré, que muda dunas e barras de rios de um lado para outro, rápido. A incerteza vai com o homem no mar e o espera na volta ao porto. A flexibilidade e capacidade de adaptação, presente nos mastros e no caráter, está sempre presente. Enquanto os homens e barcos do litoral dos extremos do litoral cearense resistem às ameaças do mar e do progresso, nossos sentidos agradecem e desfrutam o espetáculo.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Chuva no sertão

       Exatamente agora chove no Sertão dos Crateús. Assim como em todo o semi-árido brasileiro, três anos de seca fizeram os açudes secarem e os conflitos pela água se acirrarem. A guerra pela água já existe no Brasil, e aqui perto teve acampamento de 300 em parede de açude para impedir a liberação de água pro município à jusante!
         Estes dias choveu, 100mm foram suficientes para pintar a paisagem de verde e o fundo de alguns açudes com água. Percebe-se no ar molhado a alegria e a esperança que todas as criaturas aqui ganham imediatamente junto com as gotas de água que caem.
Por isso, ver a chuva que pode ser a salvação da lavoura começar a cair bem diante dos meus olhos significa muito. Dura pouco, tanto quanto o tempo que se leva para escrever estas linhas: já não chove mais. Pedaços do céu ja estão azuis de novo, não há mais vento. Voltar ao trabalho. Dizem que ter esperança de algo que a gente ja está vendo não é esperança...