Na primeira semana a bordo tive como companhia, das sete as nove da noite, o cricrilar agudo e persistente de um grilo (até onde eu sei apenas os grilos o fazem)que, oculto, dividia a cabine comigo. Suavizados pela distância os cricrilares soam românticos, mas a poucas dezenas de centímetros pode ser enlouquecedor. Decidi conviver em paz com meu inusitado companheiro e logo desisti de tentar encontrá-lo e expulsá-lo. Uma semana depois calou-se meu companheiro, e nunca mais o (ou)vi.
Hoje, abrindo e revirando uma caixa de ferramentas, reencontrei e pela primneira vez vi meu companheiro, que estava surpreendentemente vivo e silencioso.Confesso que fiquei feliz com o encontro e surpreso com o carinho que tive pelo bicho. Não obstante, convidei-o gentilmente a entrar em meu punho fechado e a voltar ao seu habitat convencional, há algumas boas dezenas de quilômetros do seu porto de embarque.Espero que tenha dado tudo certo com ele.
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Guriú
Deitado no tucum armado na varanda da minha casa no Guriú,olhando o quintal de cajueiros e o mar ao fundo, finalmente dá pra escrever com calma.
Depois de quarenta dias e quarenta noites vividos nos dez metros quadrados do barco o estado mental e as decisões estratégicas estavam sendo cada vez mais influenciados pelo stress agudo e natural da sobrevivência e da navegação difícil: ficou claro pra mim que era hora do repouso. Consegui.
O Guriú é um povoado de poucas centenas de casas que fica no encontro do rio homônimo com o mar, dez quilômetros à oeste de Jericoacoara. Entre Jeri e Tatajuba e à sombra destes destinos, o fluxo turístico no local se limita a passagem obrigatória dos veículos sobre o canal de maré, feita em balsas similares à jangadas, conduzidas por jovens locais com a ajuda de longas varas de pau do mangue. A vila fica entre as dunas e o canal de maré, perto do manguezal sucumbindo ao soterramento pela areia trazida pelo vento leste, marca registrada do local.
A condição geográfica, ecológica e sociocultural do Guriú o fizeram muito interessante para uma estadia em terra: porto bom, seguro e abrigado, alta diversidade de ambientes a explorar (oceano, canal de maré, rio, manguezais, salgados, carnaubais, dunas, matas de restinga), fartura de pescados, cultura de pesca e navegação tradicional rica e diversa, e uma postura generosa, amigável e respeitosa da população.
Diante da possibilidade de ocupar uma casa bastante agradável, generosamente cedida pela família do pescador Jorge, me instalei, e já estou em terra há boas semanas, repousando no tucum do alpendre, caminhando pelas matas, praias e dunas, comendo muito peixe fresco e saboroso, acompanhando os nativos em suas atividades, fazendo manutenção do barco.
Na entrada da barra o prático contratado se mostrou bem pouco prático, e o barco bateu violentamente com o fundo na passagem rasa e com ondas fortes. As pancadas surdas e os estalos lúgubres me fizeram achar que de fato era o fim. Pular na água, com água pela cintura, empurrar o barco para dentro da barra a cada onda que o suspendia, aguardar a pancada com o fundo e torcer pra passar logo sobre a croa foi o que deu pra fazer, e deu certo. Já nas águas calmas do canal uma meia dúzia de canoas à vela esperava a maré subir um pouco mais pra chegar ao povoado.
Ofereci reboque às canoas, e quando a maré encheu entreguei o leme a um dos pescadores e me concentrei em retirar a água que já batia no volante do motor. Em poucos minutos o pequeno bote a vela fundeava no porto do Guriú, seguido pelo cordão de canoas coloridas...
As velas azuis do Estrela e o seu comandante já eram conhecidos dos locais do Guriú, que acompanharam, nos dias anteriores, com a natural supresa, as minhas tentativas de entrar na barra, as desistências e o retorno à Jeri com o duro leste na cara. E eu com igual supresa fiquei sabendo que nas duas tentativas estive bem à frente das entradas corretas.
Fotos: Pescador varejando canoa no Rio Guriú; Dunas estiradas entre a vila e a barra do guriú; Árvores de mangue sendo soterradas e asfixiadas por areia das dunas; Canoas no porto do Guriú e o habitual enxame de compradores de peixe na chegada de uma; Vista da barra do Guriú , em primeiro plano vários pés de ciúme, planta exótica e invasora (!)
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Barra pesada
Mais alguns dias em terra na Jeri, rede armada em casa de amigos. Diariamente esperar a maré seca para ir à bordo, e quando a maré não está tão seca assim nadar bastante, as vezes com alguma coisa suspensa em uma das mãos pra não molhar. Depois, escalar o costado para subir a bordo, tarefa nem sempre fácil.
Tirar a água que já começa a entrar pelas costuras do casco, bem sacudidas pelo peso do mar e do vento dos ultimos dias e pelas pancadas no fundo da "marina" da Jeri. Organizar velas, cordas, roupas e equipamentos, jogar água no convés. Voltar para terra, buscar alimento, abrigo.
Nos planos a próxima parada é Mangue Seco - Guriú, que ficam a umas 7 milhas à oeste. Destino desejado porque tem porto bom, abrigado e peixe farto, temido porque acessível apenas por uma barra rasa e perigosa.
Suspendi os ferros e parti para um reconhecimento da Barra do Guriú na quarta pela manhã, vento favorável e brando, amarrei o leme e a escota da vela e pude passear a vontade pelo barco enquanto o "piloto automatico" cuidava do rumo. Gostei da brincadeira.
Pouco depois, como de costume, o vento endureceu e com ele o mar e a velocidade. Já se via as pequenas casas do Mangue Seco, o que parecia ser a barra se aproximava, o ponto no GPS, tomado da carta nautica, estava errado, agora tinha que ser tudo no visual. Chegando mais perto as ondas já começavam a arrebentar e o barco já galeava o suficiente pra eu ter que me agarrar na borda enquanto escutava as coisas todas chacoalhando sob o convés. Onde deveria ser a barra se viam finas linhas brancas de arrebentação sobre um mar amarelo: estava raso, perigoso, se encalhasse ali seria moído pelas ondas e pela areia em alguns minutos. Decidi voltar.
Agora era o mar e o vento batendo de frente. Tinha que ligar rápido o motor, enrolar e baixar velas e mastre e sair rápido dali, tudo isso sobre ondas, sob vento, balançando violentamente e frequentemente banhado por sprays de água salgada. No fim deu certo, consegui soltar a vela da retranca, enrolar no mastro, tirar o mastro e amarrar na borda, tudo com o motor ligado. Ainda bem que eu ja estava literalmente com a faca nos dentes, um dos nós que prendia a vela à retranca estava muito apertado e impedia todo o processo, a lamina resolveu facil. Depois disso duas horas e pouco de pilotagem contra o mar e o vento, e eu estava de novo na Jeri.
Achei que era a maré que nao estava alta o suficiente, hoje tentei de novo, e tudo igualzinho: velada mansa pra ir, barra complicada, retirar vela e mastro no alvoroço e voltar contra o vento.
Tudo isso tem me dado muito trabalho, seria mais facil por terra, a pé, nestes tempos muitas vezes tenho pensado em terminar a empreitada náutica: voltar pro Acaraú, vender a canoa e continuar por terra. Vida normal, casa normal, chegou a hora?
Hoje, exausto da volta, no barco, esperando a mare baixar pra ir pra terra, uma das velozes canoas nativas aproou para mim e foi chegando, sinalizaram pra terra, eu confirmei, encostaram e embarquei pra terra.
Contando a minha desventura, perguntei se conheciam um prático pra me ajudar a entrar no Guriú, tinha um a bordo, amanhã vamos sair as 9. Na conversa mais várias informaçõpes e histórias interessantes. Um dos pescadores me pergunta se a policia me pegou mesmo. Explico: invariavelmente as comunidades portuarias (pescadores, carpinteiros, desocupados em geral) acreditam piamente que sou algum tipo de criminoso, ou traficante, ou fugitivo. Como assim, um gringo viajando sozinho de barco, nao pesca, entra e sai do barco frequentemente com sacolas e mochilas suspeita? Pra apimentar alguem havia inventado um boato que eu havia sido pego por uma das trollers da policia militar que patrulham a Jeri, e é claro, o boato pegou. Achei graça.
Chegando em terra um por do sol incrivel, um bom banho de agua doce, agora agradavelmente instalado em uma poltrona a beira mar, escutando excelente musica brasileira ao vivo, conectado via rede wireless, esta é Jericoacoara...
Amanhã parto as 9 pro Guriú com meu prático Adriano. Talvez eu demore um pouquinho mais pra vender a canoa...
Camping nas lagoas azuis
As noites dormidas sobre as firmes margens da Lagoa da Jijoca compensaram o trabalho de transição do barco para a terra. Além do bom sono, a água limpa, doce e azul serviu pra muito banho e inusitadas remada de caiaque e velejada de jangada.
Lagoas desse tipo e dessa coloração são frequentes na zona costeira que vai de Jijoca de Jericoacoara até Camocim.São formadas pelo armazenamento da água da chuva entre as dunas, ou mais raramente pelo represamento de rios costeiros pelo avanço das dunas (nesta região o avanço das dunas é perpendicular à linha de costa, portanto o fenomeno do barramento natural de rios).
A reduzida quantidade de nutrientes na água e o tamanho relativamente grande das partículas da areia mantém a água cristalina, especialmente logo depois que termina o inverno (estação das chuvas, aqui de fevereiro a maio-junho). Ao longo do verão muitas desaparecem.
São um excelente contraponto às agitadas e turvas águas das praias da Jericoacoara, e devidamente exploradas pelos empreendimentos turísticos. Nos pontos mais interessantes e acessíveis há várias barracas de praia, com as típicas redes e mesas dentro da água.
O banho é excelente, a água deixa a pele e cabelos agradavelmente limpos.
Na volta foi duna atrás de duna, lagoa atrás de lagoa, vinte e poucos km embaixo do sol cearense, com pouca água. Divina providência: um sítio de coqueiros sendo soterrado pelas dunas, cocos que estariam a quinze metros de altura ao alcance das mãos! A maré que subia ainda deixou cruzar o Serrote pela praia, no meio da tarde de volta a vila pra comer alguma "comida de panela" como dizem aqui, e encontrar uma árvore pra amarrar a rede.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Na tal da Jericoacoara
Tarde de sábado na Duna do Pôr do Sol: ritual obrigatório com companhia garantida !
A primeira coisa que tem que dar certo em uma viagem é acertar o caminho. Pra Jeri é fácil, o Serrote da Jericoacoara (Serrote = diminutivo de Serra), com sua boa centena de metros de altura, pode ser visto a mais de vinte milhas de distância. Duas horas depois de partir do Acaraú já deu pra desligar o GPS e aproar praquela manchinha avermelhada no horizonte.
O brando sudeste da manhã foi o combustivel do primeiro trecho e em seguida o duro leste entra com tudo, a velada fica esportiva: ondas de mais de tres metros, o mar repleto de carneiros e a velocidade oscilando pelos 6 nós. O barco fica pequeno e nervoso, é preciso fazer força no leme e ter atenção constante, a cada onda cuidar de manter o barco aproado, expor o costado lateralmente a uma onda deste tamanho, com este vento pode emborcar a canoa. A primeira meia hora foi pura emoção, as outras 4 e meia trabalho duro. Enfim dobrar a Ponta da Jericoacoara e entrar na pequena enseada a sotavento do Serrote, o porto da Jeri.
Interessante e surpreendente encontrar este pólo de globalização e infra estrutura entre tantas pequenas praias de turismo local da costa oeste cearense. Jericoacoara impressiona pela heterogeneidade de belezas naturais, pelo volume e composição dos turistas e da infra estrutura turistica.
E decepciona pela qualidade do porto: raso e desabrigado, me obrigou a fundear longe da praia. Com água pela cintura desembarquei e consultei os pescadores locais sobre eventuais "marinas" (porções da praia mais abrigadas, onde os barcos podem encalhar na maré baixa sem bater muito o casco no fundo).
A marina ajudou mas nao resolveu: de dia ficou mais facil chegar e sair da praia, a noite impediu o sono. Fortes solavancos do casco batendo no fundo, e depois, no seco, o barco fortemente adernado por causa da quilha (imagine sua cama chacoalhando a noite inteira e parando na madrugada, mas inclinada a quarenta e cinco graus...).
Depois de 6 horas de vela intensa, um porto desses e uma noite dessas, evidentemente comecei o dia com a firme resolução de vender a canoa e voltar pra casa. Demorou um pouco mas depois de um capuccino e um legítimo pão italiano desisti de vender a canoa e me satisfiz em montar uma mochila de ataque para passar uns dias em terra...
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